Apaziguando leve,
o verde preguiçoso dos sobreiros,
chuva miudinha e fria ensopa
a areia fina e as pedras
do riacho murmurejante.
Como aragem mansa
em fim de tarde outonal,
lobos surgem da penumbra,
desconfiados e sedentos.
Silhuetas pequenas e desajeitadas
correm entre eles,
latindo de excitação.
Uma pausa de silencio
impera firme,
enquanto a sede é mitigada.
Um uivo lançado e esvaído
na tarde mansa,
descansa na alma
de quem lá estava.
O trotar rápido e cauteloso
dilui-se na floresta já negra
e novo uivo rasga a solidão,
encontrando eco
muito mais além
na bruma das serras distantes.
A HERANÇA
Era um fim de tarde gelado e cinzento, com chuva miudinha que entrava na fazenda puída do casacão, já de cor indefinida.
Caminhava havia uma boa hora
quando um ruído de motor potente se fez ouvir montanha acima.
De repente, o som desvaneceu-se e três tiros estoiraram no silencio agreste. Pronto, aí andavam eles à caça dos javalis.
Nunca mais paravam de matar.
Sou um homem que sempre viveu na serra, nasci aqui, assim como meus pais e avós.
O silêncio e a solidão eram meus companheiros constantes e cedo me habituei àquela vastidão de paisagem, aos montes dourados, banhados pelo sol de verão e que gradualmente, sem me dar conta, iam sendo pintados por um pintor misterioso que os ia matizando com cores novas e largando pinceladas de branco-neve à medida que o Inverno chegava.
Era o grande circulo pois mais uns meses e o pintor voltava a repor os tons dourados e quentes.
Novo ruído forte e um jipão surge lá em baixo, da curva da estrada, roncando pelo esforço da subida.
Passou por mim, carregando quatro homens, que gesticulavam e falavam tão alto que cheguei a ouvir palavras soltas.
Um javali morto oscilava sinistramente pendurado nas traseiras do carro. Senti-me agoniado.
Era impossível para mim, montanheiro de alma e coração, entender como tirar uma vida, podia ser desporto.
Grandes discussões, arranjara sempre que, na tasca lá da aldeia, eu saltava de palavras e alguns murros em cima do balcão, quando me vinham com a
história de que a caça era um desporto.
Matar para comer é a lei da natureza, matar por gozo, só a raça humana e com requintes como era o caso da matança aos lobos.
De quem teria partido a ideia aterradora sobre o lobo mau?
Esse ser humano devia era ter levado logo com um pau de marmeleiro pois era um dos grandes responsáveis pelas lendas absurdas sobre esse animal tão especial...
Eu tinha histórias de lobos completamente incríveis mas que não contava a ninguém porque aqui, nesta região, lobo era mesmo bicho mau.
A subida acentuou-se e comecei a abrandar. O ar gelado entrava-me peito dentro e quase queimava.
O jipão resfolegava, montanha acima, rasgando profano o silencio
profundo.
Um embate seco fez-me parar mas não entendi o que poderia ter sido pois o motor do carro continuou a ouvir-se, diluindo-se na distancia.
Alcancei a curva seguinte e um vulto caído na estrada, fez-me correr.
De súbito, o animal levantou-se, cambaleante, deu uns passos e caiu.
Um lobo.
Aproximei-me cauteloso e infeliz.
Um olhar estupefacto na sua imensa dor e um corpo que começa a arrastar-se para a berma.
Tentei timidamente tocar-lhe mas o focinho franzido indicou-me distancia.
O esforço era enorme e os olhos suplicando que não o deixasse só, naquela agonia, levaram-me floresta dentro, ajudando mentalmente e rezando para que não fosse tão grave o estado do animal, quanto parecia.
Uma convulsão inesperada deixou-me em angustia total.
Iria ser testemunha, mais uma vez, da morte de um lobo.
Tentei aproximar-me mais um pouco, recebendo um olhar exausto e desesperado.
Falei-lhe baixinho, numa tentativa de ajuda que eu sentia já ser inútil.
Um gemido saiu-lhe em estertor, mas num esforço desmedido, arrastou-se
mais um pouco e com o focinho ensanguentado, empurrou uns arbustos,
pondo a descoberto uma toca.
A sua toca.
Olhou-me e nunca mais na minha vida quero sentir aquele apelo desesperado no olhar de ninguém.
A cabeça descaiu na erva encharcada e os olhos vidrados viraram-se uma ultima vez para algo que assomava entre a folhagem.
Um lobinho escuro e cambaleante trotou a medo direito à mãe, estranhando a sua imobilidade.
Um silencio pesou e ali fiquei, estúpido e revoltado, remoendo barbaridades, caindo-me lágrimas grossas e incontiveis.
Um corpito quente e peludo encostou-se às minhas pernas.
Acordei do estupor em que me encontrava e instintivamente, baixei-me e acariciei o pequeno animal.
Depois acerquei-me da loba, que acabara de me oferecer o filho.
Tacteei-lhe o pescoço, apenas por descargo de consciência.
A vida fugira-lhe debaixo de uns pneus de jeep, guiado por um alarve qualquer, que provavelmente até guinara o volante, deliberadamente, para a matar.
Não tinha nada para cavar, portanto optei por cobri-la com ramagem, e depois de ver bem a toca e verificar que não havia mais filhotes, abri o meu casacão, aconchegando bem aquela bolinha de pelo, que gemendo e tremendo de frio, depressa serenou.
Olhei em volta, fixando pormenores, para no dia seguinte, voltar com uma pá e enterrar a loba.
Subi muito devagar, estrada fora.
Escurecia e o assobio do vento agudizava-se nos picos da serra.
Cheguei cansado e muito, muito triste.
Quem vive na serra tem por herança, o respeito pela natureza em toda a sua magnifica existência que se manifesta nas mais pequeninas coisas.
Tirei as botas enlameadas, ainda com o lobinho dentro do blusão, ele dormia tão consolado que acabei por me sentar à lareira, oscilando
suavemente, na minha velha cadeira de baloiço, pensando que a vida tinha enredos estranhos.
Eu tinha que estar ali, naquele momento, assistir àquele horror e ter o privilégio de me ser oferecido um lobinho pela sua mãe agonizante.
Nunca mais esqueceria aquele olhar, a dor, a aflição, a angustia da morte ..nunca mais.
Sempre sonhara em ter um lobo por amigo, mas jamais daquele modo.
Passaram oito anos e o Vento é o meu companheiro de todos os dias.
Cresceu, ficou mais gordo que um lobo que se preza deve ser, também mais tímido que um cão deve ser.
Oficialmente, eu arranjara-lhe uma historia bem interessante como árvore genealógica.
Como sempre, recebia por alturas do Verão, uns amigos do Canada, que faziam invariavelmente, uma bela despesa nas lojas da aldeia.
Comecei, então, a fazer correr a historia de que me iam mandar um cão de uma raça parecida com os lobos daqui.
Claro que passadas umas semanas, o dito cão apareceu e foi o encanto da toda a gente.
Os seus olhos, amarelo–âmbar eram espantosamente brilhantes e a pelagem fulva ondulava ao ritmo lento do seu andar.
Quando não gostava de alguém, levantava o focinho, mostrando os dentinhos e afastando qualquer hipótese de amizade.
Os Invernos foram correndo, o tal pintor, genial na sua paleta de cores, foi deslizando os seus pincéis sobre a serra e o Vento tornou-se a minha sombra.
Havia, no entanto, um velhote, que parava lá pelo café da aldeia onde me ia abastecer de cigarros, que, quando eu deixava o Vento amarrado na argola dos cavalos, lá fora, me olhava, olhos nos olhos, e me perguntava, fino sorriso ao canto da boca:
- Então, esse lobo mau?!
- Sempre bom, obrigado.
Invariavelmente, ele levantava-se da cadeira, no canto habitual e vinha até à rua, olhando o meu lobo de um modo tão carinhoso, que quase me fazia contar o meu segredo.
Mas a prudência travava-me a língua e depois de uma saudação, partia montanha acima, sempre ladeado pelo meu “cão”.
O tio Manel também tinha a sua lenda, que era contada à noite, à lareira, entre murmúrios de velhotes e arrepios dos mais jovens.
Inevitável era a associação entre homens, lobos e lobisomens e os serões, quando a conversa descaía para esse tema, e o tio Manel também vinha logo à baila.
Talvez porque a sua vida sempre fora solitária desde que numa tempestade, a mulher fora arrastada por uma avalanche de neve.
Isolara-se e vinha cá abaixo só quando não o podia evitar.
Era uma figura imponente, grande, alto, olhos azuis, pele curtida de muitos ventos, cabelo grisalho e barba branca como a neve assassina da sua adorada companheira...
Vivia numa casinha, bem no cimo da estrada de areia que partia da principal, aí uns seis quilómetros, serra dentro.
A minha propriedade era mais para norte, embora por vezes eu desviasse, nem sei porque e passasse lá, rente aos muros baixos, dando uma espreitada.
Aquele homem sempre me fascinara desde miúdo, sobretudo aqueles olhos que pareciam não olhar para nós mas para dentro, bem até ao fundo da nossa alma.
E desde que eu começara a trazer o meu lobo, aldeia dentro, que aquele olhar e aquele sorriso bondoso mas um pouco provocante nos seguiam, num prolongamento espiritual e silencioso que quase dava para sentir na nuca.
O Vento olhava sempre para trás quando chegava à curva da estrada e eu acabava por fazer o mesmo.
O tio Manel estava sempre parado, na borda do passeio, olhando-nos, pensativo.
Eu ficava sempre a pensar no significado daquela cena que se foi repetindo ao longo dos anos.
Hoje tinha mesmo que ir lá abaixo, como andava a tentar deixar de fumar, trouxera menos pacotes da ultima vez, e apercebera-me, de repente, de que tinha já só três cigarros.
A serra tinha aquele ar misterioso, com farrapos de neblina deslizando macios pelo vale e o silencio, só era cortado por algum piado de pássaro.
A rua estava vazia e entrei no estabelecimento, pedindo logo um café pois estava mesmo frio.
Olhei para o canto e fiquei espantado... o tio Manel não estava.
Fui perguntando mas os dois clientes e a dona do café disseram que já não viam há dias.
Saí, arrumando tudo na mochila, sempre seguido, pela presença discreta do Vento.
Quando cheguei à encruzilhada para a minha casa, hesitei mas depois, acelerei direito à casa do tio Manel.
Chamei, junto ao pequeno portão e nada.
Decidido, entrei no jardim cuidado e colorido de malmequeres e pelargónios.
Bati à porta e um murmúrio abafado soou lá de dentro.
Prendi o Vento à balaustrada do pequeno terraço, estranhando o seu olhar, excitado e de pupilas dilatadas.
Farejava enervado e o seu comportamento não era o habitual.
Fiz-lhe uma festa na cabeça, mas ele evitou-a, hábil.
Entrei, passando da luz para uma penumbra suave, tentando não esbarrar em nada, pois nem sabia onde era o comutador da luz.
Lá fui seguindo a voz do tio Manel e depois de atravessar uma sala, lindíssima, fui dar a um quarto, onde ele se encontrava.
Uma tosse violenta fazia abanar a cama.
Ele encontrava-se deitado e doente.
Mesmo assim sorriu, aquele sorriso meio atravessado que sempre me encantara desde miúdo.
- Sabia que virias....
- Isso está mesmo mau, bom vamos lá a ver o que há para aqui de remédios.
O velhote estava cheio de febre e provavelmente, teria que pedir ao médico para lá ir.
Os olhinhos dele seguiam os meus movimentos, como que esperando algo.
Estiquei-lhe as mantas, mas um peso estranho, impediu-me de o fazer.
Levantei a colcha e quatro olhinhos fixaram-me, sonolentos.
Soube instintivamente que eram lobos.
Dois.
Não tinham mais de quinze dias.
O tio Manel soerguera-se sobre a almofada e aguardava silencioso.
Sorrimos um para outro, numa cumplicidade que já datava desde que o meu Vento aparecera na aldeia, pela primeira vez.
- Os teus amigos vêm este ano???
- Acho que sim.
- Então pede-lhes que te tragam mais dois “cãezinhos” da tal raça do teu... andam por aí a dizer que há ladrões.
E mesmo cheio de gripe, nariz vermelhusco, a ternura surgiu-lhe no rosto, iluminando os olhos azuis e inteligentes.
- A propósito, já têm nomes – Trovão e Lua.
CONTO EXTRAÍDO DO LIVRO "LUA DE LOBOS" de maria de são pedro