A MULHER
Portal da intemporalidade voando,
pousado numa folha caída
de um Outono manso,
em diálogo intimo
de despedida,
entre urzes e sobreiros.
Lobo meu,
que de contradições pagãs,
vives a personagem mítica
num sonho de mulher.
A MULHER
Havia qualquer coisa que a estava a incomodar.
Toc, toc, toc...
Apercebeu-se de que continuava a ler a mesma página do livro, sabia Deus há quanto tempo.
Tentou concentrar-se mas em vão... não saía da mesma página, isto é,
chegava ao fim dela e não tinha percebido uma linha do que lera...ou do que não lera.
O ruído seco repetiu-se.
Toc, toc, toc ...
Levantou-se, curiosa em descobrir a origem do som.
A luz do dia enfraquecera e começou a acender candeeiros, pela sala fora, formando um ambiente acolhedor a cada recanto.
A chuva escorria, formando uma cortina opaca que asfixiava.
Maldito tempo!
E ainda faltavam dois dias para ele chegar.
Suspirou profundamente.
Aquelas viagens sempre a enervavam pois além da casa ser bastante isolada, a ausência dele deixava-a sem vontade de fazer fosse o que fosse. Necessitava da sua presença como do ar que respirava.
Sorriu.
Chegavam a estar, tarde na madrugada, sentados em cima da cama, falando de tudo e de nada, numa troca de ideias que os fazia ainda mais um do outro.
Toc, toc, toc ...
Estremeceu.
Aquele ruído ...
Aproximou-se da janela e uma sombra bateu contra o vidro. Instintivamente recuou, embatendo contra o carrinho de chá, atirando algo ao chão.
Que disparate!
Era apenas um ramo de árvore embatendo na vidraça ...
Toc, toc, toc ...
Olhou triste para o que os seus nervos tinham arranjado.
Baixou-se maquinalmente para apanhar os cacos em que ficara uma jarra chinesa.
Bem, lá teria que arranjar outra. Porém, nunca seria a mesma coisa pois aquela fora da sua bisavó, e além do seu valor como antiguidade, havia o valor estimativo que era incomensurável.
Paciência!
Quedou-se, cacos na mão, olhando o exterior. O temporal aumentara e o vento fazia as arvores abanarem com grande violência.
Nunca gostara de vento. A avó dizia com um sorriso que ela era como os gatos que também ficavam enervados com a ventania.
Instintivamente, fechou um pouco demais a mão e uma dor violenta fê-la olhar. Um fio de sangue corria de um feio golpe provocado pela porcelana aguçada.
Pousou tudo sobre a mesa e correu para a casa de banho, procurando estancar o sangue.
Voltou à sala, comprimindo o golpe e fazendo caretas de dor.
O vendaval enfurecia as árvores, agitando-as no ar, transformando-as em inimigos sombrios.
Uma aragem gélida passou suave, fazendo-a olhar à procura de alguma janela mal fechada.
Não soube bem como, mas começou a sentir que não estava só. Um arrepio eriçou-lhe a nuca e Kimi, no parapeito da janela, eriçado e gemendo, olhava fixamente algo atrás de si.
Nunca vira o seu siamês num tal estado de terror.
Ela voltou-se.
Lentamente.
De facto, não estava só ...
Uma mulher encontrava-se de pé, encostada indolentemente, à porta. Sorria, num sorriso frio.
Um lobo cinzento, imóvel e espantosamente belo estava ao alcance da sua mão esquerda.
- Mas como entrou?!
- NÃO ENTREI, ESTOU AQUI ... SIMPLESMENTE ...
- Mas ... mas ... - ela estava aterrorizada.
Havia algo que não entendia mas que sentia ser mortal, a envolvê-la.
As vestes da Mulher, douradas e metálicas, aquele lenço envolvendo-lhe o pescoço demasiado alto e que parecia emitir luz.
Tudo era chocantemente anormal ...
- Quem é a senhora?
- EM PRINCÍPIO NÃO DEVE INTERESSAR ... E DEPOIS AINDA MENOS ...
O gato gemia, baixinho, acochado debaixo do piano.
A Mulher deslizou na sua direcção e o lobo, vigilante, acompanhou-a silencioso.
Uma aragem glacial ondulou na sala.
Quis andar, fugir, gritar de puro terror mas nada fez.
Ficou, imóvel e espantada.
Vazia.
Então, a Criatura levantou as mãos e tocou-lhe ao de leve, no pescoço.
Vibrações estranhas retesaram-lhe os músculos em espasmos dolorosos.
Gritou.
Empurrou a Mulher mas as suas mãos atravessaram-na, em busca desesperada de matéria sólida que não existia.
Gritou novamente.
O lobo avançou e tocou-lhe ao de leve, na mão ferida.
Foi um roçar doce, tão íntimo que pareceu beijar-lhe a alma.
Pelos olhos cor de âmbar do animal, viu um mundo estranho, diferente e algo ameaçador.
Uma vertigem apossou-se dela, envolvendo-a, arrastando-a para o caos ...
Esferas vermelhas e brilhantes dançaram-lhe nos olhos.
Um silvo e um turbilhão de cores afogou-a, mergulhando-a na inconsciência.
Deslizou em estranhos pesadelos, com mulheres de garras douradas e lobos uivando em arremetidas loucas, sangue correndo em cascatas sobre pedras escaldantes.
Por fim, paz num suspiro longo e mortal.
Abriu os olhos.
Sentia-se tonta e enjoada.
Quis levantar-se mas as forças faltaram-lhe e voltou a tombar sobre o tapete felpudo.
De súbito, lembrou-se.
A Mulher!
Oh! Não!
Levantou-se aos tombos e procurou freneticamente por toda a sala.
Nada!
Suspirou aliviada.
Adormecera e tivera outro pesadelo. Já estava tornar-se um hábito bem desagradável.
Teria de ter mais cuidado com as leituras nocturnas pois os livros de terror que tanto apreciava, estavam a criar-lhe uma imaginação mórbida.
O facto de viver sozinha naquele casarão também não ajudava nada. Estava a transformar-se numa solteirona cheia de manias e que já começara a entrar em fase aguda.
Tinha que resolver de vez, a vinda dele para cá, com os seus animais, livros e montanhas de tralha. A casa era enorme e nunca haveria falta de espaço.
O Kimi teria um período de adaptação aos outros animais e depois iria tudo ficar em harmonia...esperava ela.
Um miar lamentoso fê-la voltar-se de repelão.
O gato, eriçado, fixava algo que ela não conseguia ver.
Levantou-se, meia zonza e seguiu-lhe a direcção do olhar.
Rangeu os dentes de fúria e medo.
Afinal ...
Um lenço de uma matéria estranha e brilhante, estava caído no chão.
Ao levantá-lo, reparou num pelo longo, cinzento e sedoso preso na dobra. apercebendo-se, nesse momento, de que a sua mão estava sem corte algum e completamente sarada.
Ficou estupefacta pois não havia sinal do golpe causado pelo caco da jarra.
No dia seguinte, todos os jornais traziam em primeira página, a mesma noticia:
FOI AVISTADO ONTEM, UM OBJECTO LUMINOSO, NÃO IDENTIFICADO, PLANANDO SOBRE A REGIÃO SUL DA CIDADE.
FORAM TIRADAS FOTOGRAFIAS MAS DEVIDO AO MAU TEMPO NÃO FICARAM SUFICIENTEMENTE NÍTIDAS PARA PODER SER TIRADA QUALQUER CONCLUSÃO ÀCERCA DA SUA ORIGEM.
do livro LUA DE LOBOS
autora - maria de são pedro
3 Uivos:
Lua de lobos... Então é isto!!!
Gostei.
Arrepiante e envolvente.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Adorei o teu livro, como sabes!! Beijinhos.
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